segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Contando as horas.



Silencia os pensamentos por um minuto. Lhe parecia meio inútil remoer aquelas coisas no único momento de  descanso que sobrava no longo dia de trabalho. Afinal de contas, era e era. Não havia mais o que discutir. Isso era de fato um dos raros casos em que o tempo se permite ser menos cruel e mais flexível, um caso extremo de leniência voluntária das horas, dos minutos e segundos em que houvera a auto permissão de atuar como objeto e não mais sujeito da ação. Não ligaria mais. Não dirigiria mais não sei quantas horas pra bater às duas da manhã na sua porta. Estava decidido.

Foi quando de repente seu telefone tocou, na noite anterior. A voz era inconfundível, pontuada, as palavras cuidadosamente escolhidas. Pediu alguns instantes de atenção e foi, pouco a pouco, se fazendo entender. Ela estava de volta, talvez em definitivo, e queria o ver. Ele, apesar de alguma relutância, consentiu por curiosidade de saber como estaria aquela que foi sua pedra fundamental, marco no meio do nada, coisa que talvez tivesse alguma significância um dia. E foi, sem pressa, fumando seu cigarro, até o bar onde ela estaria. E foi pensando na roupa que ela estaria usando, seria um dos seus costumeiros vestidinhos florais? E foi pensando no que aquela mulher que um dia fodeu com sua vida teria para lhe falar com tanta urgência.

O ambiente tinha um ar de filme B, de coisa feita pela metade, insistentemente forjado pra parecer feio, sujo e, por que não, lugar de encontro de ex-casais temerários com alguma coisa pungente a ser desmistificada. Ao avistá-lo de longe teve a impressão de que Hichcock apareceria a qualquer momento, de relance, pedindo um Cointreau recostado no balcão, como se fosse uma história sua. Entrou. Algumas putas o olharam presunçosas, cafetões e apontadores do jogo do bicho se revezavam na mesa de sinuca. Sentou na calçada, de frente para a rua, e pediu um chopp ao primeiro que lhe pareceu um garçom. Ela disse que já estaria lá quando chegasse. Ele já a conhecia bem, cumprir horários não era bem o seu forte.

Um ônibus parou. Ela desceu. A mesma. Seu jeito insuportável de sorrir mexendo nos cabelos caramelos. A mesma. Mas de calça jeans, salto e jaquetinha. A mesma. O olhou ainda de uma certa distância e disse em alto e bom som: Santinho! Meus olhinhos comedores, que saudade! E ele se constrangeu. Ficou observando aquelas moças da vida reparando naquele encontro como algo mais deplorável do que o que elas próprias faziam na calada dos becos. A abraçou ainda envergonhado, porém ninguém mais se importava com aqueles dois desconhecidos afetuosos. Senta aí, ele disse. 

Pediram mais um copo, riram timidamente um pro outro até que ela estufou o peito, tomando ar como se fosse explodir, e exclamou: Vamos nos casar. Ele meio sem entender aquilo, sem entender por que ela o chamou naquela altura da noite, naquela altura dos acontecimentos pra dizer que estava noiva de alguém, talvez o primeiro que tenha passado no instante em que virou as costas, enlouqueceu, quando, despindo seus sentidos, ela continuou: Eu e você. Nós vamos nos casar. Santinho bebeu um gole pesado, acendeu outro cigarro e sorriu debilmente. Não poderia deixar transparecer seu nervosismo em não saber o que fazer; talvez quisesse pagar a conta e ir embora ou, talvez, lá no fundo, deveria acreditar naquela conversa onírica e consentir com um beijo demorado. 

- E aí, o que acha de a gente ir agora pro seu apartamento e passar logo pra lua de mel?

Agora ela estava lá, deitada em sua cama de solteirão, assistindo televisão. Agora não há mais o que fazer. Nem o que pensar. Santinho terminou seu almoço e voltou sorrindo pro trabalho. O tempo não se deixa levar, como o bobo é levado pelo esperto, como o galho pela chuva, apenas pelo seu bel prazer de esquecê-la. Não se abrem fendas nas horas. Nem se resignam os minutos. Quando é pra ser, será. Essa  é a lição do calendário.

Um comentário:

  1. Perfeito! Narrativa em 3ª pessoa - que não lhe é tão comum - espetacular! Como já lhe disse, não consigo enxergar se quer um deslize! E o tema? Ah! este sempre belo: emoções humanas... a velha e nova emoção humana...

    ResponderExcluir