segunda-feira, 18 de novembro de 2013

O dia que o amor acabou.



Acordou desavisado e tomou o café de sempre. Status quo do universo: esperando a torradeira cuspir mais duas fatias de pão amanteigado. Faz um cafuné no cachorro que vem se atrever por entre suas pernas, repassa mentalmente aquilo que deveria vir a fazer - entregar mais um capítulo para o editor, esperar que ele termine seu charuto, ouvir algumas abobrinhas, talvez fazer compras com a terceira parcela do adiantamento pelo livro - e sorriu no cantinho da boca; prostituto do saber. Apertou a faixa do roupão e abriu de leve o jornal. A manchete anunciava em preto e branco na primeira página preto e branca a notícia que calou suas obviedades matinais: "MORRE O AMOR. Explosão de bomba afeta definitivamente o tato, o toque e o olhar apaixonado. Sepultamento acontecerá numa terça feira triste e as cinzas serão jogadas na Guanabara." Salvo por ter dormido um pouquinho a mais, nele e, apenas nele, o amor sobreviveu.

#Primeira nota do dia

Antônia já havia saído. Nada de espanto, era o que ela fazia toda santa manhã. Preparava seu suco de beterraba, enterrava seus óculos dois ponto setenta e cinco e saía para a labuta na agência. Não se intrometia em me acordar do meu último sono. Escrevia um bilhete e deixava em baixo da violeta. "Ainda te amo. Mais que ontem. Menos que amanhã. Não se preocupe, só fui trabalhar. Chego lá pelas oito. Não se esqueça da ração do Rafik." Hoje, porém, não havia recadinho, nem te amo, nem lembrete de comida pra bicho. Muito estranho.

Se enfiou na primeira calça jeans que viu pela frente, colocou a velha camisa azul desbotada com o rosto, já desmilinguido, do Woody Allen e saiu para comprar cigarro. Percebeu que se algo de tão terrível tivesse acontecido a mudança era tão sutil que não tinha afetado diretamente os velhinhos que jogavam apaixonados seu xadrez em frente ao mar. Nem os atendentes de padaria que fecham a cara como de costume ao mero sinal de freguês que vem pedir apenas um maço de Marlboro Light. As coisas pareciam bem naturais, os carros passando, a lama de chuva que molha os calcanhares, o balé de pernas dançando apressadas pela calçada a caminho de alguma autarquia do governo, enfim, o mesmo frenesi burocrático de sempre. Parece que até aqui a falta de amor não fazia diferença. Menos mal.

#Segunda anotação do dia

Ao que tudo indica, os sorrisos estão funcionando com a ajuda de aparelhos. Ainda existem filmes com final feliz, mas com isso ninguém parece se preocupar. Se Antônia voltasse logo poderia fazer um teste: beijaria sua nuca e, atento, se certificaria de que o arrepio não seria mecânico. Só assim saberia que aquilo tudo não era loucura. Na TV as propagandas anunciam botox nas regiões, agora flácidas, em que residia o amor. Silicone por debaixo do peito pra esconder a falta do coração. Plástica pra esticar o olhar. Tudo para se encaixar no vazio da nova moda - não dar bom dia ao porteiro é a nova vanguarda estética.

Lê o jornal outra vez. Pede garantias a si mesmo de que não tinha entendido errado. Rafik olha pela janela com certeza achando tudo normal. Assovia, pede que venha e ele aparece sem mexer o rabo fazendo uma cara de cadê minha comida. Se deita sobre o tapete e esquece de ter sonhos com a cadelinha do terceiro andar. Dorme tranquilo. Antônia chega e ele nem precisa mais de provas: joga um chocolate no seu colo e vai tomar banho. Tudo parece uma grande coincidência, algo armado, talvez pelo pessoal da editora, para promover um trote, aproveitar que está chegando seu aniversário e dar uma injeção de adrenalina nestes dias tão caleidoscópicos. Mas Antônia vai se deitar e nem mexe no espaguete feito com tanto amor.

#Terceira e última anotação do dia

Amanhã vai sem falta na editora. Precisa conversar com uns figurões pra ver se lhe quebram um galho. Quer mudar o enredo da história. Quem sabe até se trate de um compilado de artigos científicos. Vai contar ao mundo que descobriu uma forma de não mais brigar no semáforo ou em filas de supermercado. Reinventar o amor. Reensinar o amor. Um tratado filosófico para se interpretar a estrutura do beijo de esquimó ao acordar, do aperto no peito que, olha só que falsário, dará o nome de saudade. Amanhã vai ligar para o jornal e dizer que tudo ficará bem. É só acreditar.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Agora já foi, cowboy.



Subiu o último degrau da escada devagar. Tinha, de certa forma, um receio non sense de bater naquela porta outra vez, talvez um medo de vendedor de enciclopédias que se frustou por não ter encontrado nenhum comprador desde que começou. Alcançou a campainha, uma plaqueta na porta ironizava discretamente: entre sem bater. Não tinha coragem de voltar depois de tanto tempo, girar a maçaneta que imitava o que pior existia do art noveau e entrar como alguém que tivesse esquecido o guarda chuva antes de ir para o trabalho. Respirou bem fundo. Lembrou da última vez em que tinha saído por aquele batente, as costas curvadas, os olhos disfarçadamente marejados, a sensação de vazio. Segurou e apertou - din don. Ah, como aquele simples barulhinho poderia desencadear um universo de significados que estavam perdidos em algum lugar de sua memória. Um senhor de cabelos grisalhos e sorriso simpático, desses que a gente reconhece todo mundo em seu semblante, um vizinho de infância, o dono da padaria, o florista e sei lá mais quem apareceu entre o vão que se formou entre a porta e a parede, protegido apenas por uma correntinha de metal reluzente. Quero falar com a Marina, ela se encontra? E aquela cara de dar balinha no ônibus transfigurou-se de repente para uma feição que passou a residir entre a exasperação e a melancolia. Marina, meu filho, mudou daqui faz um tempo. Você quer mesmo falar com ela? Apenas consenti que sim com a cabeça enquanto ele foi caminhando pela sala, arranhando o piso com sua bengala. Eu assistindo a cena pela fresta. Voltou de súbito, o mesmo ar jovial (agora indiscutivelmente disfarçado) de antes com um bilhetinho na mão. Toma aqui, esse é o novo endereço dela. E dirigiu-se de novo pra dentro do apartamento, fechando a porta na minha cara sem se despedir.

Quando ele quis: foi aí que ela mudou. Desceu a escada e a alameda de primaveras que alguém tinha disposto não em linha irremediavelmente reta, mas de forma irregular, e fez daquelas flores cor de rosa a alegoria daquela descoberta. O bilhete era, na verdade, um recorte desastrado e trêmulo de um convite de casamento e dava pra ver, no final, em letras douradas INA. De Marina, é claro. E aquele senhor devia ser seu tio avô que voltou a morar no velho apartamento. O mesmo senhor que se correspondia frequentemente por cartas com ela, as cartas que ele a ajudou a corrigir, as cartas em que ela dizia ter encontrado um cara especial, que talvez fossem, ela e ele, visitá-lo em breve. As cartas que, vez ou outra, levaram sua foto para que o tão querido tio desse o parecer: magro, bigodes horríveis e fora de moda, parece um ator de bollywwod sem talento para fotografia, pode ser que seja um sujeito bacana. Sim, quando ele perguntou por Marina o espanto era esse. Recordou-se dos retratos que a sobrinha neta o enviara há tantos anos e se surpreendeu com a audácia daquele que ela, sem dúvida nenhuma, voltou a lhe descrever: mau caráter, individualista e sem o menor desejo de viver uma vida a dois - ps: se um dia ele for procurar o senhor neste endereço, bata a porta sem dó em sua cara. Tão ela isso.

Não fazia tipo e não tinha o menor dom de ser passional. Jogou o bilhetinho na primeira lixeira que pareceu mais triste que ele e seguiu de volta para o trabalho, dando-se conta que já havia excedido a hora do almoço. Desejou-lhe sorte enquanto olhava o trânsito pelo vidro do ônibus. Quis verdadeiramente que ela e seus olhinhos castanhos fossem o mais felizes possíveis para quando (se um dia) encontrarem-se na rua, tivessem novas e boas histórias pra contar. Colocou o fone de ouvido, botou pra tocar Bruce Springsteen e voltou a vivê-la em saudade. Apenas.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Comigo não.



Sempre acreditei putamente nesta história de "vai ser pra vida toda". Mesmo. Por isso que as vezes fica tão difícil pra mim encarar a realidade daquilo que é só fingimento. Ver o amor como um bullet time, uma alegoria desonesta com o mundo. Existe a mina do brother que diz que sente muito. Existe o brother que faz de conta que o mundo acaba aquela noite. Tantos desesperos maquiados. Tantas fantasias e, olha só, já passou o carnaval. Continuo acreditando, é fato, mas é como um tapa na cara da minha inocência botar a culpa na bebida, nas palavras ou no entendimento alheio pra botar pra fuder com o planeta sonho que a outra pessoa construiu só por que você tomou uns drinks a mais, viu-gostou-mentiu-ficou, e dane-se. De qualquer forma eu tenho pena.

E eu penso nos dois comemorando em Bora Bora, comendo coxinhas de padaria, criando os filhos e escolhendo o cardápio no restaurante. E eu me frusto. E eu passo a amar aquela pessoa pra preencher nossas lacunas. E eu sei que sua dor é filha da puta. E eu sei que sou apenas um fleneur escondido na cortina do cotidiano, observando mais uma história terminando por que alguém fracassou na missão mais fácil do universo: fazer uma pessoa feliz. Claro, você mora num planeta que não conhece flores, sonhos de valsa e aparições de surpresa. Seu planeta sábado a noite vive a ditadura do meio termo, meia verdade e, é óbvio, inteira solidão.

Natural que indivíduos como eu (sim, eles existem disfarçados de entregadores de flores, melhores amigos e
escritores de bilhetinhos anônimos) tropeçam na própria vontade do eterno e caem de cara do chão. Falta-nos a habilidade de entender que devemos trocar de celular de três em três meses, de postar fotos com todas as pessoas da festa ou de, apenas, fingir que está tudo bem quando tá na cara que não está. A diferença é que a nossa capacidade de levantar, sacudir a poeira e seguir em diante passa pelo pressuposto de que mesmo isso valeu. E que foi uma fase legal. E que foi pra vida toda.

No mais não quero servir de exemplos, sou péssimo em dar conselhos - cada um com seu cada qual. Amando com a intensidade de uma garrafa de tequila. Esquecendo com a ressaca do que já passou. A delícia do efêmero que eu não consigo sentir. A obsolência planejada do que foi feito pra ser pra sempre. Só que comigo não.