quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Agora já foi, cowboy.



Subiu o último degrau da escada devagar. Tinha, de certa forma, um receio non sense de bater naquela porta outra vez, talvez um medo de vendedor de enciclopédias que se frustou por não ter encontrado nenhum comprador desde que começou. Alcançou a campainha, uma plaqueta na porta ironizava discretamente: entre sem bater. Não tinha coragem de voltar depois de tanto tempo, girar a maçaneta que imitava o que pior existia do art noveau e entrar como alguém que tivesse esquecido o guarda chuva antes de ir para o trabalho. Respirou bem fundo. Lembrou da última vez em que tinha saído por aquele batente, as costas curvadas, os olhos disfarçadamente marejados, a sensação de vazio. Segurou e apertou - din don. Ah, como aquele simples barulhinho poderia desencadear um universo de significados que estavam perdidos em algum lugar de sua memória. Um senhor de cabelos grisalhos e sorriso simpático, desses que a gente reconhece todo mundo em seu semblante, um vizinho de infância, o dono da padaria, o florista e sei lá mais quem apareceu entre o vão que se formou entre a porta e a parede, protegido apenas por uma correntinha de metal reluzente. Quero falar com a Marina, ela se encontra? E aquela cara de dar balinha no ônibus transfigurou-se de repente para uma feição que passou a residir entre a exasperação e a melancolia. Marina, meu filho, mudou daqui faz um tempo. Você quer mesmo falar com ela? Apenas consenti que sim com a cabeça enquanto ele foi caminhando pela sala, arranhando o piso com sua bengala. Eu assistindo a cena pela fresta. Voltou de súbito, o mesmo ar jovial (agora indiscutivelmente disfarçado) de antes com um bilhetinho na mão. Toma aqui, esse é o novo endereço dela. E dirigiu-se de novo pra dentro do apartamento, fechando a porta na minha cara sem se despedir.

Quando ele quis: foi aí que ela mudou. Desceu a escada e a alameda de primaveras que alguém tinha disposto não em linha irremediavelmente reta, mas de forma irregular, e fez daquelas flores cor de rosa a alegoria daquela descoberta. O bilhete era, na verdade, um recorte desastrado e trêmulo de um convite de casamento e dava pra ver, no final, em letras douradas INA. De Marina, é claro. E aquele senhor devia ser seu tio avô que voltou a morar no velho apartamento. O mesmo senhor que se correspondia frequentemente por cartas com ela, as cartas que ele a ajudou a corrigir, as cartas em que ela dizia ter encontrado um cara especial, que talvez fossem, ela e ele, visitá-lo em breve. As cartas que, vez ou outra, levaram sua foto para que o tão querido tio desse o parecer: magro, bigodes horríveis e fora de moda, parece um ator de bollywwod sem talento para fotografia, pode ser que seja um sujeito bacana. Sim, quando ele perguntou por Marina o espanto era esse. Recordou-se dos retratos que a sobrinha neta o enviara há tantos anos e se surpreendeu com a audácia daquele que ela, sem dúvida nenhuma, voltou a lhe descrever: mau caráter, individualista e sem o menor desejo de viver uma vida a dois - ps: se um dia ele for procurar o senhor neste endereço, bata a porta sem dó em sua cara. Tão ela isso.

Não fazia tipo e não tinha o menor dom de ser passional. Jogou o bilhetinho na primeira lixeira que pareceu mais triste que ele e seguiu de volta para o trabalho, dando-se conta que já havia excedido a hora do almoço. Desejou-lhe sorte enquanto olhava o trânsito pelo vidro do ônibus. Quis verdadeiramente que ela e seus olhinhos castanhos fossem o mais felizes possíveis para quando (se um dia) encontrarem-se na rua, tivessem novas e boas histórias pra contar. Colocou o fone de ouvido, botou pra tocar Bruce Springsteen e voltou a vivê-la em saudade. Apenas.

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