quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Filosofia.



*Não faço sala para o ciúme. Ciúme é coisa de quem só tem tesão. Eu tenho orgulho e o tesão é apenas uma parte dele.

*Solidão é algo que se constroi a dois. Nenhum edício, ainda que no meio do nada, é erguido sozinho.

*Uma rua jamais será a mesma depois que passamos juntos por ela. Sempre haverá um pouco de nós dois em cada letreiro
de neon.

*Você não sente falta dele. Sente fome ou uma saudadezinha das janelas de madeira do seu quarto antigo. Por ele, talvez,
ainda seja amor.

*Me afeto com cada incidência de luz; sou como emulsão de prata, quanto maior seu colorido, melhor a fotografia.

*Ainda que eu esteja em seu calendário e você na minha guitarra, não há nada que nos prenda. Isso é só a canção dos dias.

*Algum dia outro passará os dedos por entre seus cabelos azuis e não seremos mais do que uma calçada pisada e uma música
dos Stones.

*Quero conhecer cada milímetro da tua língua. Cada espaço vago do teu corpo. Um dia tudo isso vai passar.

*Posso pirar e querer descobrir como vivem os guaranis do médio xingu. Ao voltar só quero um abraço teu e um chopp sem
colarinho.

*A vida é selvagem e ensina todo dia a voltarmos a viver como bichos. Qualquer olho no olho é sinal de sofisticação.

*Delicadeza é indicativo de que se está pleno com tudo isso. Delicadeza demais, não me leve a mal, é omissão.

*Vermelho é lindo no batom, nunca nas unhas do pé. Casamentos terminam por coisinhas pequenas que poderiam ser evitadas
com sabedoria estética.

*Talvez nunca lhe mandarei flores ou chocolates. Fica apenas a certeza de que te quero e que me bastam estas tardes ao
teu lado.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Soft Erotic Project



Ela era uma grande amiga. E ainda é, eu acho. Faz duas semanas que não a vejo e me sinto meio babaca por não ter ligado no dia seguinte. As vezes me pego pensando que o que aconteceu serviu como uma lição dolorida para nos aconselhar a não misturar as coisas, a daqui pra frente aprender a lidar com certas situações que nos aparecem como um elefante cor-de-rosa bem  no meio do eixão: bom, é estranho, mas é Brasília e em Brasília tudo pode acontecer. E tudo parece agora esquisitão depois do dia em que nós não fizemos amor.

Era bem tarde, já passava das duas da manhã, eu acho, quando meu telefone tocou. Estava saindo de um buteco com alguns amigos e ela dizia que precisava falar comigo. Ela morava em um apartamento no mesmo prédio que eu e quando fui ao seu encontro, ela já estava virando a chave. Nossos apartamentos não serviam como palcos do que ela queria dizer, muito pessoal, falou ela, cheio de coisas que nos lembram tantas outras coisas. E a gente saiu no jipe prata dela, perdidos na madrugada pela w3.

Tudo fechado. Tentamos até disfarçar com uma cerveja na frente do supermercado vinte e quatro horas mas ela tinha assunto pra virar a noite, e era sexta, então pra mim tudo bem. Sugeri que alugássemos um quarto de motel que, assim, poderíamos ver o dia nascer enquanto tomava uns bons drinks e ela vomitasse toda sua ira por não conseguir encontrar o fio da meada da monografia, suas tretas com a orientadora substituta e seu amor pequeno burguês com o professor de teoria crítica e história da arte. Péssima ideia. Percebi de cara assim que ela aceitou.

E tudo parece esquisitão depois do dia que nossos olhos se encontraram pra valer, semi nus na banheira de hidromassagem, falando de coisas sem sentido depois da septuagésima marguerita. Tanta coisa pra nos incomodar, nos intimidar - tinha esquecido de cortar as unhas do pé e você a parte de cima da lingerie - e a gente se acanhou só por que, depois de quase três anos, a gente enxergou dentro um do outro a peça chave que faltava em nossos quebra cabeças. E a gente riu.

Lá pelas cinco da manhã pagamos a conta de tudo isso que aconteceu e nos despedimos ainda na garagem do nosso prédio. Um abraço meio envergonhado e a gente caminhou, cada um para o seu lado, procurando as chaves e tendo a certeza de que tudo tinha mudado naquela noite. De qualquer forma, minha amiga, foi bom te conhecer.

Do que dizem.



Quando Elano se olhou no espelho observou uma pequena cicatriz no ombro esquerdo. Elano estava nu e sentia todos os poros como se fosse a primeira vez; o suor a florescer tímido e escorrendo pela pele, os fios de cabelo molhados. Ficou ali por alguns instantes se perguntando como só havia notado aquela marca agora, depois de tanto tempo de amizade com aquele corpo que foi lhe dado como presente ao ingressar na deliciosa tarefa de viver.

A cicatriz era bem nivelada, não era algo que causasse espanto. Conferia até um charme maduro em sua simetria quase perfeita com os ombros largos de Elano. Vestiu-se. Mariana não estava mais ali para dividir com ele a nova descoberta. Mariana agora era um retrato na sala e sua foto parecia não se interessar nem um pouco com essa história. Elano acreditou não ter visto a cicatriz por que Mariana dormia sempre com a cabeça no seu ombro esquerdo. E Mariana parecia rir disso na foto sobre a prateleira..

Pra dor de amor não há aspirina que resolva, o jeito é colocar aquela música dos Beatles e deixar que a vida toque no seu ritmo. É muito fácil dizer que tudo bem quando se tem um estoque de pequenas coisas pra cuidar, mas Elano só tinha que tirar a poeira da fotografia de Mariana duas ou três vezes por hora. De resto pode-se dizer que o mundo fica imensamente feliz com um bom rock inglês.

Mariana havia ido embora com tudo - levou as pernas do retrato, os cabelos do retrato. Mas Mariana, curiosamente, ainda estava ali pregada naquela fotografia. Seu sotaque horrível, sua mania linda de tomar banho de porta aberta e seu jeito colorido de arrumar as canecas no armário. Sim, a cicatriz! Mariana deixou em Elano a cicatriz que tinha no tornozelo. É isso! Mariana queria se fixar na pele calma de Elano, onde as gotas de suor nascem e escorrem lentamente, a marca indelével de suas histórias, o verdadeiro retrato do que ficou.

Elano bebeu o que restava no copo e saiu. Dizem que Elano comprou uma casa na Guarda e oferece cadeiras de praia pra ganhar o pão desde que descobriu que sua cicatriz deveria estar sempre exposta, sob o sol de Floripa, para o mundo ver que naquele corpo o amor já fez morada.