segunda-feira, 28 de abril de 2014

Paraíso atemporal



Na cela das horas em que nos dedicamos as mais belas coisas, dois por dois de tamanho e um café às três da tarde, é onde me encontro. Preso no tempo em que olhares causavam tanto êxtase quanto uma banana split de chocolate, baunilha e morango. Um auto exílio. Uma rendição sem luta. Pura vontade de voltar a condição de seu e sair por aí como dois perdidos pela noite imensa.

Eu tenho por você a maior admiração e desejo cada milímetro do seu corpo claro. E peço mais um chopp sempre que posso me lembrar de você. No momento que você já não está mais em mim é onde procuro cada sutileza sua que ficou no quarto. Um aperto repentino nas mãos, uma gota de suor a mais. A leveza com que você se foi é tão poética e linda que eu preferi fazer uma canção de amor a ignorar sua partida. Agora essa despedida dói como um samba do Noel.

Se nos deciframos por quê agora, justo agora, não ter mais você aqui? Agora que conheço todos os seus signos e chamo de inefável qualquer gesto seu. Agora que me permito ouvir o rádio dizer como devo prosseguir e que aquela música, a nossa música, toca de cinco em cinco minutos Agora que eu sou mais seu do que nunca. Agora que nunca tem se tornado uma palavra tão habitué em nossas bocas. Já nos devoramos, esfinge, e agora?

Devo te dizer que passei a ver as coisas como você veria e passo as tardes a me perguntar se você compraria Germinal ou Naná, do Émile Zola. Ou até mesmo se você guardaria essa grana pra ir assistir o novo filme do Lars Von Trier. Aqui você me pediria uma opinião mesmo sabendo que eu diria pra você que vale mais uma Times Square nas mãos do que dois Boulevard na Champs-Élysées voando. E você riria sem entender enquanto pegava Uivo, do Ginsberg, das minhas mãos. Nos completávamos.

Hoje eu vejo uma foto sua com esse novo rapaz que anda sorrindo ao seu lado e não esquento. Faria o mesmo se fosse eu a dividir o retrato com você. Só peço que sejam felizes como fomos e que se amem como nos amamos - se é que um dia isso seja possível. Que beijem o que já não posso beijar. Que escutem o que já não posso escutar e decidam um pelo outro cada vez que o mundo exigir. Sem mais, te amo.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

De passagem.



Sempre que passo por você eu fico pensando baixinho: você ainda vai ser minha. Mas entenda, não é minha por ser minha, minha por pura possessão. Minha pra ficar andando de mãos dadas no shopping, minha pra assistir um filme bobo na mais chata das chatas quartas feiras. Minha pra contar o que aconteceu no meu dia. Meu ouvido, minha boca, meu outro corpo.

Enquanto isso vou falando nas entrelinhas pra ver se você me entende e te ligo pra contar as coisas mais sem sentido que eu possa inventar. Dizer por exemplo como são interessantes as árvores do cerrado e o céu de Brasília. Você quase sempre, do outro lado, se perguntando por que ter me atendido as duas da manhã só pra ouvir como são belas as andorinhas as seis da tarde. Mas não me canso e insisto em te provar que sempre há algo mais nestas palavras roucas.

Sempre que passo por você eu me desfaço, é fato. E vou passando o resto do meu dia tentando recompor os meus pedaços. Andando de um lado para o outro esperando você me trazer o tanto que ficou em você, meu tempo e calendário, meu sorriso e minha paz. Olhando pela janela pra alcançar qualquer pouco de você pelas ruas. Eu me rendo, já me rendi e você sabe.

Sempre que passo por você é sempre a mesma história - um relicário de sensações que não se decifram, um misto de loucura com jasmim. E não há outro caminho ou passagem, sou obrigado a me perder no infinito doce do seu olhar todo santo dia. E agradeço a Deus por isso. Não me vejo assim faz tanto tempo que eu prefiro mil vezes estar completamente perdido por você do que encontrado em qualquer outro lugar.

Sempre que passo por você, doce, dulcíssima moça, também me deixo. Não existe outra forma de seguir em frente. O que há é também fixação. Vem um pouco de ti e fica um tanto de mim.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Quando alguém passar pela porta.



Ela tinha uma coisinha de ficar tamborilando com os dedos sobre a mesa do trabalho. E virava a cadeira pra lá e pra cá impaciente, como se esperasse alguém entrar pela porta de vidro. Um jeito meio estranho de receber as pessoas que chegavam - o olhar denunciando a decepção por, mais uma vez, ver que quem discava o interfone não era seu grande amor.

Por dias, sei lá, meses até, ela foi ficando ali na expectativa de ver tudo mudar num simples girar da maçaneta do blindex e nada. E ela passava a mão pelo cabelo loiro e batucava e girava mas ninguém aparecia. Dava bom dia para o zelador, bebia mais um café. Uma hora alguém tinha que aparecer. Não precisava usar terno de linho nem ter um sapato de verniz. Podia ser um cara normal mesmo, de camiseta e tênis procurando saber onde ficava a parada de ônibus. Assim eles poderiam cruzar seus olhares perdidos, ei, aceita sair comigo na sexta depois do trabalho? Mas nada. 

Um dia, como qualquer outro dia, ela foi ficando cansada de tanto esperar e subiu pra ir ao banheiro. E foi quando estava disfarçando suas lágrimas com rímel que alguém teve que abrir a porta pra ele entrar. Meio tímido, o olhar no chão como a contar degraus, se esbarraram na escada. Não houve atrevimento. Mas seria impossível negar que ficaram ali por muitos instantes, lendo um o sorriso do outro e atrapalhando o caminho. E ela não sabia o que fazer. Ele muito menos. Despediram-se com a melhor cara de nada que encontraram no momento.

E desse dia em diante ela deixou de olhar impacientemente para a porta de vidro, não se importava mais com a maçaneta e nem batia mais na mesa. Passou a usar um batom vermelho vibrante pra decorar o bom dia quando ele chegasse. Agora trabalhavam juntos e tinham que se esbarrar na escada todos os dias as dez da manhã. Ela contou a sua espera. Ele as suas despedidas. E foram almoçar juntos. Um manual de conquistas em cada coisa que faziam. Ele escrevia poesia. Ela adorou conhecer alguém que escrevia poesia. E passaram a conversar mais e mais e mais.

Até que numa terça feira ele não passou pelo blindex. Tinha voltado pra sua cidade resolver sei lá o quê. E os sonhos foram ficando na gaveta sem nenhum abraço ou telefonema. Ele não queria voltar e se perder todo dia naquela mesma hora da manhã. Ela tinha comprado uma caderneta com a foto do Bourroughs para lhe dar de presente. Até que ela também não apareceu. E não teve mais ninguém pra abrir a porta.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Filosofia do tato.



Era tudo seu e eu nem sabia. Cada parte daquele lugar tinha uma coisa que, por mais indecifrável que fosse, lembrava você. E eu te dava bom dia sem saber que você era dona de tudo aquilo. Dona por que ali tinha um toque seu. Não um toque na decoração da sala ou no design das saboneteiras de aço escovado do banheiro. Eram toques, marcas de dedo e suor no armário, na prateleira, na garrafa de café. Bobo como sou, também fui me encostando devagarinho, pouco a pouco, e me perdendo neste orgasmo alquímico de sentir você onde você já não estava mais.

Um dia eu também não estava mais lá e tudo era frágil demais para que alguém se desse conta. Mas suas digitais ficaram nas minhas digitais como um menino que não quer largar o doce, como a loucura não larga a película de Buñoel. E eu vou te levando com o cuidado e a delicadeza que merecem os seus grãos de matéria invisível na ponta dos meus dedos. Guardo para sempre cada pouco que for seu.

E, penso agora, nossas mãos, de fato, nunca se encontraram. Mas, como tudo, o papel do sonho de valsa que te dei, em algum lugar, também é detentor do nosso aperto comovido e inexistente. Um pedacinho de papel de bombom a vagar por aí carregando toda a sentimentalidade que é só nossa. Aqui comigo a certeza desesperada de te encontrar logo, em carne viva, para um encontro de corpos menos informal.

Só eu, eu e o caracóis que vivem a roçar por aí, sabemos que alguma coisa fica deste toque. Senão a eternidade, pelo menos o rastro que mostra o caminho.

O dia.



Naquele mesmo dia que eu te jurei pela enésima vez que iria devolver Nick & Norah para a locadora. Naquele mesmo dia em que o vizinho chegou de madrugada tocando o foda-se. Naquele mesmo dia que comprei o box dos Beatles para o aniversário da sua mãe. Naquele mesmo dia que você foi de ônibus por que deixou o carro travar com a chave dentro. Naquele mesmo dia que o chaveiro não apareceu. Naquele mesmo dia que choveu. Naquele mesmo dia que eu chorei por você não voltar.

Naquele mesmo dia que eu quebrei seu relógio. Naquele mesmo dia que eu me arrependi por falar as coisas mais terríveis ao telefone. Naquele mesmo dia que você mudou o número do celular. Naquele mesmo dia que as suas coisas passaram a não ter mais valor. No mesmo dia que valor passou a ser uma palavra sem sentido. Naquele mesmo dia que fiz pipoca para assistir de novo Nick & Norah. Naquele mesmo dia que a chave do vizinho babaca também abriu o carro. Naquele mesmo dia que sorvete de flocos passou a se chamar solidão de um litro e meio. Naquele mesmo dia que eu decidi te esquecer e não consegui.

Naquele mesmo dia que gastei uma nota preta em whisky doze anos. Naquele mesmo dia que eu descobri que preço não mata saudade. Naquele mesmo dia que eu não consegui dormir. Naquele mesmo dia que eu virei pensando no que tinha feito de errado. Naquele mesmo dia que não deu certo. Naquele mesmo dia que poderia ser diferente. Naquele mesmo dia que eu recebi uma mensagem da sua mãe. Naquele mesmo dia que eu violei a embalagem de Magical Mistery Tour. Naquele mesmo dia que parou de chover. Naquele mesmo dia que eu quis que fosse mentira.

Naquele mesmo dia que eu dei bom dia pra você com o sorriso mais sincero. Naquele mesmo dia que você acendeu um cigarro e nem percebeu. Naquele mesmo dia que eu quis ficar na cama. Naquele mesmo dia que você saiu. Naquele mesmo dia que eu te disse que era minha folga. Naquele mesmo dia que eu gostaria de ter trabalhado pra não pensar bobagem. Naquele mesmo dia que tudo acabou. Naquele mesmo dia que implorei pra recomeçar.

Naquele mesmo dia eu ainda espero um buquê de flores ou um cartão. Naquele mesmo dia eu ainda espero ver você entrando. Naquele mesmo dia eu decido que eu não quero mais mudar o calendário. Naquele mesmo dia que ainda não passou. Naquele mesmo dia que eu estou permanecido. Naquele mesmo dia que o seu silêncio não muda nada. Naquele mesmo dia eu sonho com aquele dia que um dia, fatalmente, chegará.


sexta-feira, 4 de abril de 2014

3x4


Ela não queria mais ser fotografada. E selou um pacto silencioso com o espelho: não te ligo e nem você me telefona. Não por que tinha nascido uma espinha bem na ponta do seu nariz ou por que sorvete de chocolate é mesmo uma delícia. Era algo mais. Era como se fosse alguma coisa bonita -só que feia. E, a priori, não queria pensar no assunto: lhe bastavam os retratos do colegial e as sentimentalidades que enfeitavam sua pose.

Uma hora ele vai ter que telefonar, ela pensava. Fantasiava o instante em que aquele babaca que a amava se arrependesse de aceitar o seu fora, o momento em que ele esquecesse sua submissão em acatar todas as palavras duras que ouviu. E aquilo foi roubando de pouquinho em pouquinho a sua alma, como se imprimisse na emulsão de prata aquela falta de cor, aquele preto e branco indiscreto. Talvez por isso passou a viver com os olhos baixos, a fuzilar o celular. Mas ele não ligou.

Alguém poderia lhe interromper na rua, alguém que lhe falasse umas boas verdades na frente de todo mundo na padaria, afinal de contas, uma merda monumental como esta, de deixar passar aquilo que os inocentes emocionais chamam de alma gêmea não poderia passar despercebida. Nada. Sua dor, capturada pela infinitésima fração de segundo do diafragma, era só sua. E, como uma foto três por quatro que a gente esquece na carteira, tudo estava ali e já não estava mais.

De qualquer forma (e não importam quantos sóis apareceram para acordá-la), um dia ela amanheceu pra dentro. Levantou-se e vestiu o coração com o melhor colorido que havia em seu armário decidida a revelar seus negativos. Bem que tentou ligar ela mesma pra ele, de repente ouvir alguma coisa boa que ajudasse a regar as margaridas na janela. Caiu na caixa todas as vezes e o recado que, lívida, ela deixou não poderia ser mais pertinente: foda-se.

Sacou a câmara e saiu tirando várias fotos de si mesma pelo mundo, preenchendo com sorriso e botox seus espaços vazios. Uma fotografia honesta, sem photoshop de quem aprendeu que cabeça erguida é sempre seu melhor ângulo.